O Cartaz

Ao rever mentalmente, o tanto pelo qual se sentia grata, questionou o motivo pelo qual se estaria a questionar. Sabia que ninguém está feliz sempre, mas estar feliz e ser feliz são duas coisas muito distintas.

Outra vez o cartaz. Tinha aparecido esta semana num outdoor que ficava no caminho de regresso a casa, quando saía do emprego. Era impossível não olhar para ele, para as cores berrantes e as letras garrafais, uma vez que naquele sítio quase todos os dias estava uns minutos parada na fila de trânsito, normal àquela hora. A frase, seguida de um endereço de e-mail, ficava suspensa no seu subconsciente, e incomodava-a.

“Quer ser feliz? Pergunte-me como.”

Esta semana tinha sido assim. O resto do caminho, conduzia quase em piloto automático, e aquela frase não lhe saía da cabeça. Primeiro rira-se, depois deixara de ter graça. O lado racional dizia-lhe que era uma parvoíce, que ninguém pode ensinar a felicidade. A felicidade é um estado onde se está ou não se está. Ou não? E se fosse possível aprender a ser mais feliz? Este pensamento levantou a questão que não se colocava muitas vezes. Era feliz? O cartaz, ficou para trás mais uma vez, e levou consigo no pensamento, esse conceito tão difícil de medir, a felicidade.

É verdade que ultimamente, dava por si a chorar em cada anúncio lamecha, em cada cena de filme mais dramática ou romântica, a abrir as comportas por tudo e por nada. O que significava isso? Que já não era assim tão feliz? Não tinha de que se queixar. Tinha emprego, dois filhos que adorava, bons amigos, uma vida preenchida e um companheiro que a ajudava e apoiava em quase tudo. Nesta economia instável e desoladora, não podia dar-se a grandes luxos, mas tinha uma vida confortável. o que mais poderia almejar?

Ao rever mentalmente, o tanto pelo qual se sentia grata, questionou o motivo pelo qual se estaria a questionar. Sabia que ninguém está feliz sempre, mas estar feliz e ser feliz são duas coisas muito distintas.

Quanto mais pensava nisso, mais claro se tornava que não era assim tão feliz. Sentia uma insatisfação e um desalento, que lhe era cada vez mais penoso varrer para debaixo do tapete. Revia a sua vida à procura dos momentos em que se perdera. Do momento em que começou a deixar para trás os sonhos, as suas próprias vontades, e a aceitar que era suficiente, que estava a fazer o mais correto. Não era fácil descobrir, mas escarafunchando, sem medo, talvez fosse…

Esta vida que tinha, começara depois de sair de uma relação complicada. À sua volta todos os seus amigos estavam casados ou a casar, e ela sentia-se um pouco perdida sendo a única solteira. Conheceu o João através de amigos mútuos, sociável, inteligente, giro, educado. Nada como o Pedro, o namorado anterior, mimado, ciumento, desconfiado. Todos lhe diziam que o João era um achado. E era. Além disso, ele tinha outra maturidade, estava na relação a sério. Para casar. Fora uma mudança de atitude tão grande em relação à relação anterior, que ela se deixou ir, enlevada. Ao fim de poucos meses estavam a planear o casamento. Até a sua mãe andava nas nuvens, entre os preparativos e o alívio que foi o fim da antiga relação. Todos os seus amigos os olhavam com admiração.

Os meses que antecederam o casamento passaram a voar. Tudo era romance, tudo era festa e celebração. Secretamente ela achava que não o merecia, ele parecia demasiado bom para ser verdade, principalmente por se saber longe de ser perfeita. E por isso, por saber que nunca estava satisfeita, deixou de dar ouvidos aquela voz interior que lhe dizia que talvez se estivesse a precipitar. Eram tão diferentes… Mas dizia a si própria que era a diferença que os unia. Que cada um ensinaria ao outro milhentas coisas, e ela que sempre gostara de aprender, satisfez-se com essa promessa.

Hoje, olhando para trás, viu sinais a que na altura não deu importância. A novidade da casa nova, da vida nova, da segurança de uma pessoa que a aceitava e a amava, ofuscara-a. Dois meses depois do casamento, engravidou do primeiro filho. Mal tinham tido tempo de usufruir de uma vida a dois e de se conhecer verdadeiramente. A gravidez, se bem que tranquila, foi um misto de medo e êxtase. Foi depois do filho nascer, que percebeu que a lua de mel tinha acabado, agora era a sério. Questionou se não se teria precipitado. Decidiu que era medo do desconhecido e afastou as dúvidas para longe.

Não se deixaria ir abaixo com tudo o que a engolia, naquela voracidade que engole uma mãe de primeira viagem. Era uma mulher forte e decidiu que ia ser a mulher perfeita, a mãe perfeita, a nora perfeita. Passou anos a tentar sê-lo. A conseguir sê-lo. Pelo menos aos olhos dos outros. Que dentro de si cada vez mais se julgava uma fraude. Abandonou, uma a uma as coisas que gostava de fazer. Depois do segundo filho, o tempo era o seu bem mais escasso. Ele chegava tarde todos os dias, de tão focado na carreira, e ela tinha que assegurar que tudo corria bem com as crianças, e em casa. À sua volta os seus amigos pareciam felizes, satisfeitos com a vida que lhes cabia. Mas, se por acaso a conversa com as amigas tinha um teor mais intimo, percebia que o casamento delas também já não era aquela maravilha que lhe tinham vendido. Que era normal. Que o fogo do início passa. Que cada vez se tem menos tempo para namorar, que os filhos e as tarefas diárias consomem tudo. Convenceu-se que o sexo escasso era normal, que cada vez mais lhe apetecer menos, era normal. Porque estava sempre cansada, porque nunca tinha sido verdadeiramente espectacular, porque afinal não melhorou com o tempo, porque não se conheciam assim tão bem na esfera intima, porque… Não, não era assim tão feliz.

A culpa só podia ser dela. Sempre insatisfeita. Sempre à espera de algo que não sabia bem o que era. Sempre com expectativas irrealistas. Tinha uma vida boa, um marido que a respeitava, dois filhos que adorava. Uma vida que aos olhos de muitos era perfeita. Ela é que inventava problemas onde não existiam.

Enquanto ia nestas considerações chegou a casa, estacionou o carro na garagem, e foi nesta altura que sentiu algo não estava bem, que algo tinha acontecido de diferente na rotina de dias sempre iguais. Os filhos. Esquecera-se de ir buscar filhos à escola! Como é que é possível esquecer os filhos! Imaginou como eles se estariam a sentir com o descuido, e neste momento, sem dúvida que se sentiu infeliz. Maldito cartaz!

Uma opinião sobre “O Cartaz

  1. É impossível não sentirmos a angústia da personagem que, por azar, é bastante real. A vida é cíclica e volta e meia lá vem a insatisfação da rotina que tirou o lugar da felicidade.

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