703

Será que alguém pensava nela? Será que alguém sequer reparava nela, pensava de onde vinha, para onde ia e o que fazia? Será que os outros faziam juízos de valor como ela também os fazia? Será que os passageiros do seu autocarro trocavam ocasionalmente um olhar a dado momento como quem diz “ela hoje também não veio”?

Naquela noite fria de Inverno, corriam-lhe pesadas gotas de água de chuva pelo pára-brisas do carro em que se encontrava no lugar ao lado do condutor, nunca no lugar do condutor.
As lágrimas que ameaçavam transbordar pela margem da barreira que havia criado nos seus olhos, pareciam-lhe igualmente pesadas e desconfortáveis, mas por muito que achasse que o melhor seria desistir e deixá-las sair livremente, forçou-se a tentar fazer com que desaparecessem.

Quando estava prestes a perder a luta, vislumbrou um rosto conhecido. O sua capacidade de reconhecimento facial era fantástica, disso não podia ter dúvidas. Conhecia a mulher que caminhava no passeio imediatamente do lado da sua janela do carro de vista. Tinham-se cruzado dezenas de vezes num dos seus antigos autocarros matinais, onde tantas vezes a viu amamentar o filho. Era a primeira vez que a via sem uma criança presa ao seio, mas as bochechas mais escarlates que já vira mantinham-se.

Havia sempre algo estranho em ver as pessoas dos autocarros fora desse contexto, embrenhadas nas suas vidas reais onde, apesar de pouco ver e saber, deixam de corresponder àquilo que ela imaginara que seriam as suas vidas. Algo na sua forma de andar, que não via dentro dos autocarros, permitia adivinhar que tipo de pessoa eram. E nunca correspondiam à ideia que tinha delas. Que decepção.

De certo que o homem que andava sempre com o coelho cor de caramelo ao colo, este sempre perfeitamente enfeitado por um chapéu com flores, seria o mais próximo da caracterização que fizera dele na sua cabeça. Mais estranho do que a sua companhia do dia a dia ser um coelho, era o seu olho esquerdo, permanentemente inchado, escondendo o próprio olho num círculo de carne e vasos sanguíneos dilatados.

Agora que tinha mudado de rotina e, consequentemente, de autocarro, estes personagens foram desaparecendo dos seus dias e dos seus pensamentos mais frequentes, embora não os tivesse apagado permanentemente da sua memória.

Agora que já não os via todos os dias, perguntava-se se eles próprios se perguntavam onde ela estaria e porque seria que já não a viam no 703. Será que alguém pensava nela? Será que alguém sequer reparava nela, pensava de onde vinha, para onde ia e o que fazia? Será que os outros faziam juízos de valor como ela também os fazia? Será que os passageiros do seu autocarro trocavam ocasionalmente um olhar a dado momento como quem diz “ela hoje também não veio”?

Ao pensar naquilo, assustou-se com o quanto isso a preocupava, no quanto a fazia pensar. Subitamente assustou-a não o facto de ser esquecida, mas a sua necessidade de que não o fosse.

Não sabia porquê, mas não conseguia lutar contra isso. Algo dentro de si – talvez caso de estudo freudiano – apaziguava-se quando permitia que estes cenários, embora fantasiosos, se criassem e desenvolvessem dentro da sua mente. Nunca saberia se seriam ou não verdadeiros, mas preferia acreditar que sim.

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